Espuma dos dias – Sobre o futuro do Sistema Monetário Internacional: uma verdadeira incógnita — Texto 11. Porquê pagar o gás russo com rublos?  Por Jean Claude Werrebrouck

 

Nota de editor:

Com a atual guerra na Ucrânia e, em particular, com as sanções económicas e financeiras sobre a Rússia os comentaristas e analistas têm-se debruçado sobre as eventuais consequências de tais medidas sobre o estatuto do dólar enquanto moeda de reserva mundial e de moeda preferencial nas trocas internacionais. A propósito deste tema organizámos uma série de 13 textos, “Sobre o futuro do Sistema Monetário Internacional: uma verdadeira incógnita”. Publicamos hoje o décimo primeiro texto – “Porquê pagar o gás russo com rublos?”de Jean Claude Werrebrouck.

Como resulta da leitura dos textos desta série, o futuro do sistema monetário e financeiro internacional é um tema sobre o qual ninguém é capaz de dizer de seguro seja o que for. O resultado final da atual guerra na Ucrânia, que não se sabe quando terminará, nem como terminará, certamente influenciará a evolução do sistema monetário internacional e o papel do dólar no sistema, mas tão importante quanto a guerra em curso e a forma como terminará é igualmente saber qualquer será o comportamento dos beligerantes de peso, os EUA e a URSS no pós guerra. Os exemplos históricos assustam.

Neste contexto, perspetivar o futuro face ao enorme nevoeiro que se tem pela nossa frente é difícil. Disto mesmo damos conta pelos textos que publicamos onde se torna visível que o processo é influenciado por múltiplos fatores, nomeadamente decisões impossíveis de prever, o que tornam as previsões naquilo que verdadeiramente são: previsões.


Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

8 m de leitura

Texto 11. Porquê pagar o gás russo com rublos?

 Por Jean Claude Werrebrouck

Publicado por  em 1 de Maio de 2022 (original aqui)

 

Poucos comentadores têm colocado a questão dos requisitos russos para o pagamento de combustíveis fósseis. No entanto, sabe-se que foram tomadas duas decisões: o pagamento em rublos por um lado, e o compromisso de comprar ouro numa base sem limite a um preço de 5000 rublos por grama.

Para compreender isto, é interessante comparar a Rússia de hoje com os EUA no final da Segunda Guerra Mundial. Na altura, a América era a grande loja onde o mundo se abastecia quanto este estava destruído pela guerra. Logicamente, a reconstrução teve de mobilizar o “grande armazém”, pelo que os EUA gozaram de um considerável excedente externo. O país tem tudo para oferecer enquanto não há nada para comprar nos países destruídos. A contrapartida deste excedente é uma circulação monetária desequilibrada. Os EUA não podem aceitar moedas estrangeiras como pagamento, uma vez que não oferecem qualquer contrapartida em mercadorias. Sabemos o que aconteceu a seguir em termos de organização financeira internacional: um dólar teoricamente convertível em ouro apenas a pedido dos bancos centrais, com as outras moedas respaldadas pelo dólar, com base numa taxa de câmbio fixa. No final, é a situação excedentária dos EUA que justifica as regras: os EUA não precisam de moedas estrangeiras como pagamento e querem vender em dólares. Também não podem aceitar uma taxa de câmbio flutuante que conduziria a desvalorizações permanentes das moedas parceiras.

Historicamente, sabemos que se passará progressivamente de uma “escassez de dólares” (o dólar é demasiado escasso para aqueles que não podem exportar e são obrigados a importar) durante o período 1944/1952, para um “excedente em dólares” (o dólar tornar-se-á superabundante quando a competitividade dos parceiros foi restabelecida e os EUA começaram a registar défices) durante os finais dos anos 50 e 60. E foi este “excedente de dólares” que levou ao fim da organização monetária do pós-guerra: o Presidente Nixon decidiu em 1971 tornar o dólar inconvertível, seguido do fim das taxas de câmbio fixas.

Esta história é interessante para compreender os acontecimentos actuais relativos ao rublo. Devido às decisões tomadas pelo presidente russo, encontramo-nos numa fase de “escassez de rublos”. De certa forma, a Rússia tornou-se o grande armazém do mundo (combustíveis fósseis, matérias-primas agrícolas, vários minerais, etc.) e a sua balança comercial internacional está em grande excedente. Exigir o pagamento de gás em rublos é, portanto, o equivalente a exigir o pagamento de bens norte-americanos em dólares nos anos 40.

A decisão russa pode ser apresentada como simplesmente técnica: GAZPROM aceita pagamentos em dólares e converte-os em rublos, o que apoiaria o rublo e evitaria o seu colapso. Isto é o que ouvimos no Ocidente. Infelizmente, a decisão é mais importante e é uma escolha completamente geopolítica. Uma vez que existe um embargo sobre as divisas detidas pela Rússia, esta não pode aceitar o pagamento do gás num ativo que se tornou em grande parte ilíquido e, portanto, de valor quase nulo. Do mesmo modo, os EUA não podiam aceitar pagamentos em moedas cujo poder de compra era próximo de zero na década de 1940. O comércio nessa época, e portanto encontrar mercados para a enorme indústria americana, requeria escolher o dólar como meio de pagamento e sobretudo uma política de transferências (Plano Marshall) que permitia fornecer aos países devastados pela guerra os meios de pagamento para a sua reconstrução.

Transposta hoje para a questão do gás, é evidente que a Rússia não vai propor à Europa um Plano Marshall, e portanto a “escassez de rublos ” é uma situação cuja solução é o fim dos combustíveis fósseis, da mesma forma que a reconstrução foi, no período pós-guerra, a solução para a “escassez de dólares”.

Também por transposição, pode-se imaginar que a compra de ouro em rublos pela Rússia é o equivalente ao Plano Marshall do pós-guerra. Existe, contudo, uma diferença fundamental: o Plano Marshall foi uma transferência de riqueza, enquanto a compra de ouro é o meio de exigir um pagamento genuíno pelo gás russo. Seria o pagamento em euros ou dólares o equivalente a um generoso Plano Marshall: uma oferta de gás contra um ativo que se tornou ilíquido devido ao embargo. Claro que não há nada de automático na compra de ouro, e enquanto for possível, como faz hoje a Hungria, encontrar rublos por simples euros ou dólares, o comércio pode continuar. Mas como estamos numa situação de “escassez de rublos”, é evidente que o seu preço (o do rublo) só pode aumentar e que em breve será melhor comprar ouro e dá-lo à Rússia, a fim de adquirir rublos que autorizem a compra de gás.

A aposta geopolítica da Rússia é exigir um pagamento genuíno: gás por rublos que só podem ser adquiridos através da compra de ouro. Se nada mudar, a contrapartida do excedente de uma Rússia que se tornou um grande armazém será ouro. Pensava-se que a Rússia seria sancionada pelo congelamento dos seus bens em moedas ocidentais, elas próprias aumentadas diariamente pela compra de gás. A realidade é que a Rússia quer agora ser paga em ouro.

O resto da história é simples: os compradores de gás terão de obter rublos através da venda de enormes quantidades de moeda ocidental em troca de ouro trocado por rublos. Se outros países excedentários, como a China, tiverem a ideia de copiar o modelo russo, existe alguma preocupação de que o Ocidente perca o seu ouro e de que as moedas ocidentais desvalorizem. É claro que isto é apenas uma tendência ou um cenário para o futuro do nosso mundo. Esperam-se novas e pouco previsíveis reações ocidentais.

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O autor: Jean Claude Werrebrouck é economista, antigo professor na Universidade de Lille 2. Inicialmente especializado em questões de desenvolvimento e economia do petróleo, ele destacou-se no problema da natureza da renda petrolífera. Como Diretor do IUT foi integrado na equipa fundadora dos Institutos Universitários Profissionalizados (IUP).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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